Jacques Lacan subscreve a sentença de São João “No princípio era o verbo”, que fundamenta o cristianismo, a “verdadeira” religião, segundo o próprio Lacan. Trata-se de um ponto em comum entre a psicanálise e a religião, mas que não vai muito mais adiante, pois o uso da frase se entranha nos dois discursos de formas ostensivamente diferentes, até o extremo de contrapor-se sem remédio. Para o cristianismo, a encarnação do Verbo, da palavra de Deus, produz-se com o advento do Cristo Redentor, vindo para curar a humanidade do real mediante a insuflação do sentido, meio pelo qual o homem pode adaptar-se ao real com a esperança na vida eterna. Tomamos aqui o real em sua acepção de “o que não funciona”, o que atravessa ‘o andar da carruagem’, de maneira que a coisa não anda, contrapondose, então, ao discurso do mestre, cujo fim é que as coisas vão ao passo de todo mundo. Assim, o real é o que repete-se para obstaculizar a boa marcha. Ante esse real em jogo, distintos discursos oferecem distintas respostas, e nessa se embasa o que Freud chamou os três impossíveis: governar, educar e psicanalisar. Podemos substituir tais infinitivos pelos discursos que Lacan estabelece: o discurso do mestre (governar), discurso universitário (educar), que vem a ser uma variante do discurso do mestre, e o discurso do psicanalista (psicanalisar). A estes impossíveis, Lacan acrescentará o discurso da histérica (fazer desejar) e nele fundamenta o discurso filosófico e, posteriormente, o discurso da ciência. Sobretudo o que produz-se com o divórcio entre a ciência que Freud conheceu e a religião – divórcio em que, no início, se precipitam, também, as condições da psicanálise. Aqui não devemos esquecer que a ciência a que Freud sentia-se em dívida está à sombra da teologia (Newton) e da dogmática (Kant); ou seja, ainda casada com a igreja.
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