Até quando só saberemos ver na cultura popular os seus frágeis potes de barro e rústicos tecidos de tear ou suas singelas canções de ninar e danças devocionais? Tem um rosto menos festivo e mais armado a outra face da cultura do povo. Cabe a nós nos desvendar de nossa visão míope e fragmentada e observar com profundidade a face oculta da cultura popular. Fazer bordados, cestos e potes é atividade universal, mas não são universais as maneiras do fazer, nem o material com que se faz e nem as formas ou os padrões utilizados para fazê-los. A diversificação de técnicas empregadas e de formas obtidas, definem o caráter regional do artesanato. E a face visível do artesanato regional é a marca que o grupo social que o produz deixa impregnado e registrado no barro, couro, palha, madeira, fibras, linho, etc... Na rotina do fazer artesanal esconde-se a continuidade histórica dos processos tradicionais e técnicas milenares, incorporados e padronizados pelo grupo e reinventados por cada artesão, a cada nova peça ou forma realizadas. A execução das técnicas artesanais traz consigo a memória do cotidiano (síntese da sabedoria cristalizada no passado e no presente) e o clamor das necessidades básicas, misturados às condições locais, ao estilo e ritmo de vida vividos, à visão de mundo futuro e aos recursos naturais e disponibilidades materiais existentes. O artesanato retrata, de um lado, a identidade cultural de diversificada população, dividida ente o sonho e a luta, o anseio de dias melhores e o fatalismo histórico da pobreza, a esperança e a submissão, a espera da vinda do Messias e a busca pelos direitos humanos, e, de outro lado, ele reflete a mediação, apropriação e reprodução desta cultura pelos órgãos e instituições públicas e particulares, locais e regionais. Rico em formas, peças e produtos, de utilidade ou beleza, em cores e materiais variados, trabalhos em soluções simples ou complexas, o artesanato paradoxalmente é produzido por pobres e explorados artesãos na sua maioria tarefeiros tutelados e dependentes dos "benefícios" governamentais. Do conflito latente e não solucionado entre as ações institucionais e os anseios e necessidades populares, sobressai o artesanato como um dos indicadores principais da dialética "cultura x desenvolvimento" e que podemos denominar Vida. O artesanato é visto, apreciado e comprado aos pedaços, nas feiras, lojas e exposições, como é também em pedaços que nós conhecemos a vida do bóia-fria, do camponês, do meeiro, do operário, do sememprego, o trabalho do povo, os artifícios do seu viver e as canções sobre a morte e a vida. Entretanto os artesãos produzem, não pedaços de vida, mas formas completas em si mesmas de vida sofrida, de vida em festa, de vida em sonhos e de vida em busca.
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